Já saíram todos. Mas eu ainda ouço as vozes e
os risos na minha cabeça. Doí-me a cara de forçar o sorriso. O batom custa a
sair e espalha-se para lá das fronteiras dos lábios como se eu fosse um palhaço
de boca disforme e cómica. Olho para os sapatos caídos no canto e sinto o ardor
de uma bolha que se formou no calcanhar. Sento-me. Olho-me ao espelho e procuro
na Maria Ana que me olha o que ficou dos sonhos da menina que meteu a vida num
smart naquele dia de chuva.
Levanto-me e olho as roupas no cabide. Toco
as plumas leves e suaves da gola do terceiro acto. Faz-me comichão no nariz e
tenho de encolher o espirro no meio das falas. Desvio a cara para o lado oposto
ao público e imagino-me a pegar fogo à gola quando chegar ao camarim.
Abro a gaveta e procuro algo normal para
vestir. Algo que me esvazie das personagens com quem vivo. Está um embrulho em
cima do móvel. Tem uma fita vermelha que termina num laço. Sei que é um livro. Procuro
um cartão. Uma pista. Um sonho que possa agarrar, guardar, e saber que foste
tu.
Eu vi-te na plateia. Estavas um pouco
escondido. Procuro-te em todas as sessões. Desta vez, antes do pano subir,
antes de me colocar na minha posição, procurei uma vez mais por ti, desejando
que a amizade seja maior do que a mágoa. Tremi quando te vi. Por me enganar nas
vezes que não vieste, dizendo que não é importante, apagando o desejo de
receber um sinal só para não me desiludir.
Quando segurei o livro contra o peito, virada
para ti, pegava-lhe com muita força para não se notar que as minhas mãos
tremiam. Puxei do vozeirão para abafar a emoção das falas ditas a duas vozes.
Na minha cabeça ouvia o meu eco. Eras tu.
Desta vez o palco foi nosso, como o foi tantas
vezes ainda antes de haver palco, na tua sala, no meio de papéis espalhados, o
único lugar onde fui princesa e me senti rainha de alguma coisa.
Pego no embrulho e desejo ainda mais que seja
teu. Largo-o e não o abro para o delírio durar mais um pouco. Observo-o e
deito-me a adivinhar que livro será, e viajo para as estantes cheias de pó
daquele Alfarrabista onde íamos juntos procurar peças de teatro. Inspiro e
consigo sentir o cheiro abaunilhado dos livros de folhas gastas, com histórias
escritas e histórias das mãos que os viveram.
Num impulso pego no embrulho e puxo uma ponta
do laço vermelho. O papel abre de imediato como se o laço fosse mágico e uma
vez desfeito todos os tesouros ficassem à vista. O livro não tem capa e as
páginas estão manchadas. Cheira a Invernos à lareira e chá quente. É o meu
favorito, para juntar aos outros, todos o mesmo. Agora sei que foste tu. Que
estiveste aqui, real, mas invisível para mim. Ou então fui eu, que naquele dia
de chuva, decidi não te ver mais.
Arrumo o livro na gaveta e guardo com ele os
sonhos. Visto o casaco. Calço os sapatos. Os mesmos, os que fazem doer, porque
eu sei que aguento. Porque quero sofrer só mais um bocadinho por não te ter.
Apanho o sorriso que fugiu. Há pessoas à minha espera.