Silêncio. Absoluto silêncio. Não sinto o frio mas
estou numa gaveta gelada. É mais ou menos como as dos filmes mas menos
cinematográfica, mais velha e usada, menos brilhante. Se calhar é porque estou
dentro deste filme. Tenho uma etiqueta no dedo do pé. Fui aberto e cozido. O
médico falava do jogo de ontem enquanto registava os dados do meu aneurisma
cerebral. É estranho saber, já depois de morto, que tenho, ou melhor, tive um
aneurisma cerebral, que na verdade podia ter morrido a qualquer momento, se
calhar já há muito tempo. Agora, dentro da gaveta da morgue, teço considerações
banais sobre a vida, em como este facto, se o tivesse sabido, teria mudado a
minha postura. Teria? Teria mesmo sido suficiente para me fazer aproveitar
melhor, nem que fosse só um pouco, os meus dias? A possibilidade de morrer a
qualquer momento, se eu tivesse alguma vez pensado nisso a sério, teria feito
diferença? Mas a possibilidade de morrer a qualquer momento é tão realista, e
está tão presente que ninguém pensa nela. Afastam-se pensamentos sobre a morte
quando se está vivo, mas tecer estas considerações já morto é inútil.
Então quando? Quando podia eu ter decidido viver?
Viver de verdade, aproveitando dias e noites com a consciência da finitude, e
não com o medo do dia seguinte? Como poderia eu, em vida, ter realmente vivido?
E agora, morto, por alguma razão consigo ouvir os
meus pensamentos vivos e sentir a mais profunda solidão. Sabe-me bem esta
solidão serena e irremediável, até agora não está a ser muito mau estar morto.
Não tenho fome, sede, frio ou calor, não estou ansioso, não preciso de um comprimido à mão para pôr
debaixo da língua quando as horas me esmagam e o dia não tem piedade. Não ouço
as vozes, nem as ordens, ou as ameaças. É bom este silêncio na minha cabeça,
esta vontade de descansar, de parar, de ficar neste vazio como se tivesse
voltado ao início e pudesse começar de novo. Mas não posso. Eu já estou na
meta.
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