domingo, 16 de fevereiro de 2014

O Mar


“O mar é a mais líquida, a mais extensa e a mais habitada das metáforas. Transparente, mas parece azul por reflexo do céu. Também pode ser verde, depende das algas transportadas ou do grau de poluição. Tem os abismos do subconsciente, a metamorfose contínua da superfície. Tem grutas e recifes de coral. Destroços de naufrágios, despojos da humanidade a boiar. Às vezes, convulsiona-se, outras, estagna-se. Erguem-se vagas que se elevam a dezoito metros de altura, outras calmarias de tédio e sudação. Em poucos minutos ensaia-se uma tempestade, emissária das fúrias dos deuses, depois tudo se dissipa como uma bruma imponderável. Recomeça sempre, ondulação sem repouso, em cada onda um reinício do ciclo eterno, com a cadência de um verso. Tudo transita, tudo recomeça, tudo se dissolve, tudo se funde na ambivalência. É povoado por excêntricas criaturas, cardumes, espécies comedoras e espécies comidas, anémonas, medusas, crustáceos, florestas submarinas, sereias, baleias gigantes. É navegada por Caronte, Jonas devorado pela baleia e depois vomitado, por Ulisses, Calipso e outros argonautas. O mar é literariamente arável.” 
"Que Importa a Fúria do Mar", Ana Margarida de Carvalho, Pág. 137

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