“O
mar é a mais líquida, a mais extensa e a mais habitada das metáforas.
Transparente, mas parece azul por reflexo do céu. Também pode ser verde,
depende das algas transportadas ou do grau de poluição. Tem os abismos do subconsciente,
a metamorfose contínua da superfície. Tem grutas e recifes de coral. Destroços
de naufrágios, despojos da humanidade a boiar. Às vezes, convulsiona-se,
outras, estagna-se. Erguem-se vagas que se elevam a dezoito metros de altura,
outras calmarias de tédio e sudação. Em poucos minutos ensaia-se uma tempestade,
emissária das fúrias dos deuses, depois tudo se dissipa como uma bruma
imponderável. Recomeça sempre, ondulação sem repouso, em cada onda um reinício
do ciclo eterno, com a cadência de um verso. Tudo transita, tudo recomeça, tudo
se dissolve, tudo se funde na ambivalência. É povoado por excêntricas
criaturas, cardumes, espécies comedoras e espécies comidas, anémonas, medusas,
crustáceos, florestas submarinas, sereias, baleias gigantes. É navegada por
Caronte, Jonas devorado pela baleia e depois vomitado, por Ulisses, Calipso e
outros argonautas. O mar é literariamente arável.”
"Que Importa a Fúria do Mar", Ana Margarida de Carvalho, Pág. 137
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