domingo, 25 de outubro de 2015

Nunca me viste, Maria Ana


Subo as escadas e procuro a minha cadeira. Fila L, lugar 23. Não tenho grande visão mas não faz mal, que se te vejo mal pior me verás tu, e ainda bem, penso. A verdade é que não me verás de todo, nem nesta plateia, nem se fosse ter contigo ao camarim. Nunca me viste, Maria Ana, pelo menos nunca para além do óbvio, nunca para além do meu corpo magro e desengonçado, dos meus piropos banais, do meu amor imenso por ti.
Sento-me e sinto desconforto. Um frio na barriga antes de subir o pano. Imagino para lá do palco e vejo-te, a tez muito branca e lisa, camaleónica depois da maquilhagem. Observei-te tantas vezes à socapa a fazer o risco por cima dos olhos, a forma como davas um jeito à boca e esticavas a pálpebra com a outra mão. E agora imagino-te no teu robe branco e sedoso, que te cai nos ombros estreitos como se fizesse parte do teu corpo, vejo a pequena gota de suor que te nasce no peito, entre os seios, como um sintoma da ansiedade que de imediato eliminas com os dedos de unhas curtas, pintadas de vermelho.
Levantas-te. O robe cai. O teu corpo recebe a roupa do outro corpo com que sobes ao palco. Colocas a peruca longa e loira e apagas o que resta de ti. Renasces. Sobes aos sapatos, sais para o corredor, segues para a tua posição atrás do pano e eu sei que já lá estás, que só este pano vermelho, pesado e grosso me separa de te ver. E então sufoco-me na incerteza de te ver ou sair, ir embora e evitar a onda que me vai derrubar quando te vir.
Sobe o pano. Fico. Por medo de me arrepender. Porque tenho de te ver.
É uma sala e tu está sentada num sofá em frente à lareira, lendo. Viras uma página e choras. Olhas o fogo. Levantas-te e aproximas das chamas um papel que estava dentro do livro. Afastas-te enquanto arde, as mãos segurando o livro contra o peito, virada para a plateia, virada para mim, olhando-me, dizes, dizemos juntos, eu sei o que vais dizer, eu sei todas as tuas falas dos nossos ensaios em minha casa. Eu digo, tu dizes “Que este fogo me consuma como queima a tua carta”. Recebo uma cotovelada da senhora ao meu lado. Olho-a e vejo o seu olhar furioso por cima dos óculos com lentes progressivas, o dedo indicador na vertical em frente ao nariz e aos lábios. Falei alto. Mais alto do que pensei que falei.
No palco ainda choras, frágil. Quem me dera que fosses esta personagem, frágil, a chorar de amor queimando a minha carta.
Mas tu és a mulher que me deixou sozinho com a sala cheia de peças de teatro. Que, quando perguntei porquê, porque é que tens de ir, porque é que não continuas a fazer o que gostas mas aqui, me respondeu – Porque eu decidi que vou, e vai ser como eu decidi.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Nada de ti aqui, Maria Ana


Ainda não passou um mês e já não há nada de ti aqui, Maria Ana.
Só eu, que continuo teu.
Da janela ainda te vejo a arrumar as últimas malas no carro. Inventei uma desculpa para não te ajudar mas estava exactamente aqui, escondido atrás da cortina, vendo-te enfiar a vida num Smart, debaixo da chuva de um dia triste, o Black a latir e a chapinhar com as patinhas nas poças da estrada.
Quase um mês sem vos ouvir subir pelo prédio ao fim do dia. O Black com a trela solta batendo escada acima, e os tacões das tuas botas pretas marcando o teu passo sempre apressado, talvez dois degraus de cada vez para o arreliar numa corrida que no fim o deixavas ganhar. E eu ficava à espera, sabendo que, depois de entrares em tua casa, pousares o casaco e a boina, retocares o batom vermelho e penteares as pestanas, virias para aqui com os textos e os planos e os sonhos.
Esta sala era o teu palco. Eu fui o teu primeiro público, e serei o teu eterno público, mesmo se um dia as luzes do palco se apagarem para ti, e o sonho não se cumprir, e as palmas não se fizerem ouvir, eu continuarei atrás da cortina a olhar o estacionamento vazio com o sonho a forçar a imaginação de te ver chegar.
Lia as falas contigo. Dizias que contracenávamos mas eu era um miserável ponto, daqueles que falham os tempos e se perdem nas páginas da peça. O problema é que me perdia na tua luz e ficava surdo na tua gargalhada, mesmo a gargalhada encenada, falsa, enganosa, perfeita de trabalhada, capaz de te sair da alma em pranto.
Maria Ana, tenho saudades de ser só eu a gostar de ti. De não receberes cartas, e-mails e flores dos admiradores que não sabem quem és e que te querem sem te conhecer. Que são enganados pelas tuas personagens, pela falsidade com que te inventas para pisar, uma vez mais o palco, ficando tu, Maria Ana, à espera do fim, no camarim.

domingo, 11 de outubro de 2015

O favorito do mês - Setembro 2015


Este é um favorito sem opinião escrita. Sem vontade de encher a página branca depois de lido. Raro. Mas acontece.
Gostei da premissa. Gostei de como a ideia é trabalhada. Gostei de pensar nas possibilidades e de as emparelhar com a realidade. Gostei de sentir medo, porque o terror está bem conseguido. Gostei de colocar em causa, porque penso e acredito.
Não gosto do Michel Houellebecq e gostava de me ter esquecido disso mais vezes durante a leitura. Mas é difícil gostar da escrita de quem não se gosta e eu gosto. E por isso este livro sobe ao pódio este mês. A minha imparcialidade é imperfeita, mas não tenho dúvidas de que o livro é brilhante.