domingo, 29 de novembro de 2015

Eu, Maria Ana

Já saíram todos. Mas eu ainda ouço as vozes e os risos na minha cabeça. Doí-me a cara de forçar o sorriso. O batom custa a sair e espalha-se para lá das fronteiras dos lábios como se eu fosse um palhaço de boca disforme e cómica. Olho para os sapatos caídos no canto e sinto o ardor de uma bolha que se formou no calcanhar. Sento-me. Olho-me ao espelho e procuro na Maria Ana que me olha o que ficou dos sonhos da menina que meteu a vida num smart naquele dia de chuva.
Levanto-me e olho as roupas no cabide. Toco as plumas leves e suaves da gola do terceiro acto. Faz-me comichão no nariz e tenho de encolher o espirro no meio das falas. Desvio a cara para o lado oposto ao público e imagino-me a pegar fogo à gola quando chegar ao camarim.
Abro a gaveta e procuro algo normal para vestir. Algo que me esvazie das personagens com quem vivo. Está um embrulho em cima do móvel. Tem uma fita vermelha que termina num laço. Sei que é um livro. Procuro um cartão. Uma pista. Um sonho que possa agarrar, guardar, e saber que foste tu.
Eu vi-te na plateia. Estavas um pouco escondido. Procuro-te em todas as sessões. Desta vez, antes do pano subir, antes de me colocar na minha posição, procurei uma vez mais por ti, desejando que a amizade seja maior do que a mágoa. Tremi quando te vi. Por me enganar nas vezes que não vieste, dizendo que não é importante, apagando o desejo de receber um sinal só para não me desiludir.
Quando segurei o livro contra o peito, virada para ti, pegava-lhe com muita força para não se notar que as minhas mãos tremiam. Puxei do vozeirão para abafar a emoção das falas ditas a duas vozes. Na minha cabeça ouvia o meu eco. Eras tu.
Desta vez o palco foi nosso, como o foi tantas vezes ainda antes de haver palco, na tua sala, no meio de papéis espalhados, o único lugar onde fui princesa e me senti rainha de alguma coisa.
Pego no embrulho e desejo ainda mais que seja teu. Largo-o e não o abro para o delírio durar mais um pouco. Observo-o e deito-me a adivinhar que livro será, e viajo para as estantes cheias de pó daquele Alfarrabista onde íamos juntos procurar peças de teatro. Inspiro e consigo sentir o cheiro abaunilhado dos livros de folhas gastas, com histórias escritas e histórias das mãos que os viveram.
Num impulso pego no embrulho e puxo uma ponta do laço vermelho. O papel abre de imediato como se o laço fosse mágico e uma vez desfeito todos os tesouros ficassem à vista. O livro não tem capa e as páginas estão manchadas. Cheira a Invernos à lareira e chá quente. É o meu favorito, para juntar aos outros, todos o mesmo. Agora sei que foste tu. Que estiveste aqui, real, mas invisível para mim. Ou então fui eu, que naquele dia de chuva, decidi não te ver mais.
Arrumo o livro na gaveta e guardo com ele os sonhos. Visto o casaco. Calço os sapatos. Os mesmos, os que fazem doer, porque eu sei que aguento. Porque quero sofrer só mais um bocadinho por não te ter. Apanho o sorriso que fugiu. Há pessoas à minha espera.

sábado, 21 de novembro de 2015

Sou invisível, Maria Ana


Desce o pano e eu olho para o livro que tenho no colo. Embrulhado por mim. Uma fita vermelha que termina num laço. Foi naquele alfarrabista onde íamos juntos procurar peças de teatro. O Black ficava à porta enquanto nós vasculhávamos estantes de livros gastos pelo tempo, os que tu mais gostavas.
Comprei-te um livro sem capa e com as páginas manchadas, velho das mãos e dos olhos que o consumiram. Um livro com história, dirias tu de olhar a brilhar, a cheirar a Invernos à lareira e chá quente. É para a tua colecção, se ainda a fizeres. A tua colecção de exemplares do mesmo livro, o teu favorito. É uma edição rara, disse-me o senhor da loja. Eu não sei. Sem ti não percebo nada de livros. No outro dia fui a uma livraria comprar um livro para mim e senti-me perdido. Segui o conselho do livreiro e saiu-me um policial cheio de sangue que me deixou toda a noite de olho arregalado na porta da entrada. O que te irias rir de mim. Se soubesses. Se eu to pudesse contar. Se quisesses saber.
Acordo dos pensamentos e vejo-me só na plateia. Levanto-me e procuro o acesso aos camarins. Ocorre-me que talvez não me deixem entrar. Sigo por uma porta e imagino-me invisível. A actriz que fez de tua tia vem na minha direcção. Encolho-me por dentro. Nada me diz. Sou invisível.
Espreito por uma outra porta de onde me chegam vozes e risos. O teu riso. Generoso como um rio que galga as margens. E vejo-te rodeada de pessoas e flores. Há champanhe e copos numa mesa. Estás de costas, ainda de cabelos loiros. Os sapatos descansam-te dos pés caídos num canto. Seguras flores e um copo enquanto dás sorrisos de batom vermelho. Recebes um beijo na mão e o espelho conta-me que retribuis com o olhar de pestanas longas, sensual e carente, quase sonolento. Fora do palco o olhar já é o teu?
Pouso o livro num móvel alto ao pé de um cabide com roupas. Passo os dedos por uma gola de plumas. Leves e suaves. Quase como se não existissem ou as minhas mãos as pudessem atravessar. Olho uma última vez para o livro e penso se darás por ele, se saberás que fui eu. Saio. De onde nunca estive. Sou invisível.