sábado, 21 de novembro de 2015

Sou invisível, Maria Ana


Desce o pano e eu olho para o livro que tenho no colo. Embrulhado por mim. Uma fita vermelha que termina num laço. Foi naquele alfarrabista onde íamos juntos procurar peças de teatro. O Black ficava à porta enquanto nós vasculhávamos estantes de livros gastos pelo tempo, os que tu mais gostavas.
Comprei-te um livro sem capa e com as páginas manchadas, velho das mãos e dos olhos que o consumiram. Um livro com história, dirias tu de olhar a brilhar, a cheirar a Invernos à lareira e chá quente. É para a tua colecção, se ainda a fizeres. A tua colecção de exemplares do mesmo livro, o teu favorito. É uma edição rara, disse-me o senhor da loja. Eu não sei. Sem ti não percebo nada de livros. No outro dia fui a uma livraria comprar um livro para mim e senti-me perdido. Segui o conselho do livreiro e saiu-me um policial cheio de sangue que me deixou toda a noite de olho arregalado na porta da entrada. O que te irias rir de mim. Se soubesses. Se eu to pudesse contar. Se quisesses saber.
Acordo dos pensamentos e vejo-me só na plateia. Levanto-me e procuro o acesso aos camarins. Ocorre-me que talvez não me deixem entrar. Sigo por uma porta e imagino-me invisível. A actriz que fez de tua tia vem na minha direcção. Encolho-me por dentro. Nada me diz. Sou invisível.
Espreito por uma outra porta de onde me chegam vozes e risos. O teu riso. Generoso como um rio que galga as margens. E vejo-te rodeada de pessoas e flores. Há champanhe e copos numa mesa. Estás de costas, ainda de cabelos loiros. Os sapatos descansam-te dos pés caídos num canto. Seguras flores e um copo enquanto dás sorrisos de batom vermelho. Recebes um beijo na mão e o espelho conta-me que retribuis com o olhar de pestanas longas, sensual e carente, quase sonolento. Fora do palco o olhar já é o teu?
Pouso o livro num móvel alto ao pé de um cabide com roupas. Passo os dedos por uma gola de plumas. Leves e suaves. Quase como se não existissem ou as minhas mãos as pudessem atravessar. Olho uma última vez para o livro e penso se darás por ele, se saberás que fui eu. Saio. De onde nunca estive. Sou invisível.

2 comentários:

  1. a ver se desta vez sai o comentário ...
    Gostei tanto deste post, lembrei-me de Barcelona porque há um alfarrabista mesmo em frente do palau de la musica catalana e um embrulho com livros é sempre bom com uma fita vermelha fica ainda mais bonito.
    O site está mais bonito : ))

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  2. Obrigada pelo comentário e pela insistência! :)
    Tudo o que nos lembra Barcelona é bom!
    Obrigada.

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